"Somos tratados como escravos"
Como o Rio, que proporcionalmente tem a maior rede de saúde do país, não consegue dar um jeito na saúde pública? As notícias sobre falta de médicos nos plantões de hospitais públicos municipais e estaduais são cada vez mais freqüentes. Nas últimas semanas, tenho conversado com diferentes profissionais do setor para tentar entender o problema. Já aviso que não tenho uma resposta definitiva. Se tivesse, já teria procurado o atual e o futuro secretários municipais de saúde para apresentar-lhes a fórmula mágica. Mas uma coisa é certa, é preciso repensar a relação entre médicos e prefeitura.
Chamar um médico de uma cooperativa para trabalhar num hospital público deveria ser a exceção, mas virou a regra. O cooperativado seria para tapar buracos, mas se transformou na "solução" diante da falta de profissionais no quadro de servidores. Oferecendo salários considerados baixos pelos profissionais, a Secretaria Municipal de Saúde não conseguiu preencher os cargos no último concurso público. Os cooperativados reclamam que são considerados funcionários de segunda classe.
"Somos tratados como escravos. Mesmo não recebendo, continuo trabalhando", me confidenciou um médico do Hospital Municipal Miguel Couto com salários atrasados há três meses. "Quando ligamos para a cooperativa para saber o motivo da falta de pagamento, ninguém nos atende."
Uma colega dele resolveu ligar para a Secretaria Municipal de Saúde para saber se havia previsão de pagamento à cooperativa. Só assim ela poderia receber o salário. "Eles me trataram como se estivessem me fazendo um favor. E só disseram que o pagamento (de um dos salários atrasados vencido há três meses) seria feito 'nos próximos dias'. Como assim, nos próximos dias? Eu tenho contas para pagar!", desabafou.
Na busca por salários melhores, há médicos deixando de atender no Rio para dar plantões em cidades do interior e até mesmo em outros estados. É fácil compreender por que as cidades menores pagam mais. Nelas, há carência de profissionais. Para atrair os médicos formados nos grandes centros, geralmente é preciso enfiar a mão no bolso. Se for para ganhar a mesma coisa, ele continua onde está.
Mas nas grandes capitais, os salários deveriam estar na mesma faixa. Aparentemente não é o que acontece. A prova disso é que tem muito médico carioca trabalhando parte da semana em São Paulo para engordar o orçamento.
Nesta semana, encontrei uma mulher na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) - um pequeno pronto-socorro estadual - de Campo Grande, zona oeste do Rio. Ela procurava médico para o filho de quatro meses. A criança estava com febre e dores no corpo. Com medo, a mãe dizia que, em Paciência, bairro carente onde mora também na zona oeste, já há vizinhos com dengue. A mulher já tinha passado na outra UPA de Campo Grande, na UPA de Santa Cruz, bairro vizinho, e no Hospital Municipal Rocha Faria, em Campo Grande. Todas as unidades estavam sem pediatra. "De que adianta construir tanta UPA se não tem médico?", reclamou.
A Organização Mundial de Saúde recomenda que haja um médico para cada grupo de mil pessoas. No Brasil, a taxa é de um médico para cada 622 habitantes*. O número revela uma distribuição desigual. O Maranhão, por exemplo, tem quase a metade de médicos recomendada (1/1.917 habitantes), mas esse não é o caso do Rio, que tem a melhor taxa do país (1/302).
Os próprios médicos não valorizam as especialidades de pediatria e clínica médica. São as residências menos procuradas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), por exemplo. Por outro lado, cirurgia plástica e dermatologia são as mais concorridas.
Médicos mais experientes apontam um outro problema. A nova geração estaria mal acostumada com a grande quantidade de recursos hoje disponíveis. A medicina foi uma das áreas de conhecimento que mais evoluiu nas últimas décadas, principalmente com o aparecimento de novos tipos de exame e medicamentos. "Quando eu comecei, não havia nada disso. Trabalhar em hospital público era medicina de guerra. A gente não tinha nada. Mas, nem por isso, dizia que não havia condições de trabalho", pondera. Segundo ele, o médico tem todo o direito de exigir o melhor para si e para o paciente, mas também deve se esforçar ao máximo para cumprir sua missão, mesmo quando a realidade enfrentada dentro das emergências está longe da ideal.
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