terça-feira, 27 de setembro de 2016

Segurança pública do RS entrou em colapso, diz especialista

Professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo (Lia de Paula/Agência Senado)

Atolado em dívidas e com dificuldades de pagar em dia o salário dos seus servidores – das polícias Civil e Militar, inclusive – o Estado do Rio Grande do Sul vive hoje uma escalada inédita da violência. Nesta semana, um jovem de 18 anos foi executado dentro do saguão do Aeroporto Internacional Salgado Filho, em Porto Alegre. O caso se soma à alarmante estatística de homicídios dolosos ocorridos no Estado, que cresceram mais de 70% em uma década. Em todo o ano de 2015, foram registrados 2.405 assassinatos. Só no primeiro semestre de 2016 o número já chega a 1.276. Em entrevista ao site de VEJA, o sociólogo e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo explica a soma de fatores que culminaram na onda de criminalidade que aterroriza os gaúchos. Segundo o especialista, as medidas que foram tomadas até agora – como a substituição do secretário de segurança e o envio de tropas da Força Nacional ao Estado – têm apenas “efeito simbólico”.

A que fatores o senhor atribui o aumento da criminalidade no Rio Grande do Sul? Principalmente, à redução do efetivo policial, ao parcelamento e diminuição dos salários dos policiais e à renovação das lideranças nas facções criminosas, que instauraram uma nova lógica de violência, baseada no extermínio dos grupos rivais para o controle do mercado da droga. Soma-se a isso o contexto de precariedade dos presídios gaúchos – superlotados e nas mãos do crime organizado -, o que só tem aumentado a arregimentação por esses grupos.

Como se deu esse processo de queda no efetivo policial? A diminuição ocorre desde os anos 80. Hoje, nós temos em média 18.000 policiais em todo o Estado. Nos anos 90, eram 25.000 homens. O número ideal para dar conta de toda a demanda seria cerca de 35.000. Nos últimos meses, as aposentadorias aumentaram muito sem que houvesse a devida reposição, pois os concursos estavam paralisados. Isso aconteceu especialmente na Polícia Militar, que é responsável pelo policiamento ostensivo.
Acabamos entrando em um ciclo vicioso em que a criminalidade aumenta, a polícia se torna mais violenta e a população aplaude

Qual é a influência da crise econômica nesse quadro? Esse processo se acentuou com o parcelamento dos salários pagos ao funcionalismo público e com o corte das horas extras, estratégia que vinha sendo adotada desde o governo Tarso Genro (PT) para dar conta da carência do efetivo.

Essas medidas salariais atingiram a todos os servidores do governo. Por que com os policiais esse impacto foi maior? Uma coisa é um funcionário desmotivado dentro do gabinete. A outra é um policial desmotivado que lida todo o dia com um contexto de violência. A situação é bem mais delicada. Para eles estarem motivados com a sua atividade de risco é preciso estrutura, pessoal e renumeração. Fora isso, existe toda uma mobilização por parte dos sindicatos, tanto da Brigada Militar como da Civil, que têm promovido paralisações. Nesses dias, não há a realização de operações, registros de ocorrências, etc.

E o que as autoridades têm feito para combater o crime?A segurança pública do Estado hoje está numa situação de quase colapso. Os responsáveis pela área, até um mês atrás [quando o secretário Wantuir Jucini foi exonerado do cargo], adotaram um discurso de conformismo. Você ouvia os comandos da Polícia Militar e Civil dizerem que “não tinham o que fazer”, “que era melhor evitar sair à noite porque as coisas estavam muito complicadas”, “que o aumento da criminalidade estava acontecendo em todos os Estados”. Um oficial chegou até a dizer numa ocasião que “era melhor chamar o Batman”. Todo esse discurso acabou reforçando a sensação de insegurança da população.

Como o senhor avalia a chegada da Força Nacional ao Estado? O efeito é apenas simbólico, direcionado para a opinião pública. É uma tentativa de mostrar que se está fazendo alguma coisa, mas o impacto na queda das estatísticas criminais não existe e nem vai existir. Cento e cinquenta policiais fazendo policiamento ostensivo, além das policiais locais, não tem efeito muito significativo. Além disso, os policiais daqui estão recebendo parcelado e pouco, e os homens da Força Nacional recebem mais e em dia. Isso acaba gerando uma situação de descontentamento.

Qual é a situação dos presídios hoje? Nós vemos no Rio Grande um processo bem acentuado de encarceramento. Em um ano e meio do governo José Ivo Sartori (PMDB), a população carcerária aumentou de 28.000 para 34.000 presos. E nós só temos vagas para 20.000. Essa situação é sentida principalmente nas cidades maiores, como Porto Alegre, Caxias do Sul, Santa Maria, Pelotas, Passo Fundo, entre outros. Os presídios também são dominados por facções criminais que estão em pé de guerra na Região Metropolitana de Porto Alegre. Esse encarceramento massivo acabou reforçando a dinâmica de acertos de contas e disputas de território na região. No presídio central de Porto Alegre, por exemplo, não há grades na cela. Quem comanda toda funcionamento dos pavilhões são as facções. O que acaba acontecendo é arregimentação de novos membros. Há nesses locais um certo clima de pacificação por causa de pactos entre os grupos. Mas fora dali as disputas acontecem.

A lógica não seria que a criminalidade diminuísse com o aumento da prisão de criminosos? Esse é o equívoco do senso comum. Se você tem um presídio dominado por esses grupos, quanto mais se prende, especialmente bandidos pequenos da ponta do mercado da droga, mais se consegue capitalizar o espaço prisional para a organização deles. Eles acabam saindo do presídio endividados com o tráfico e trabalhando para ele.

Quais foram os erros do governo? Considero que a atual política de segurança acabou priorizando demais a repressão ao varejo da droga. Concentraram-se em desmontar bocas de fumo, prender pequenos traficantes, o que não tem grande impacto sobre os crimes mais violentos, como os homicídios. Essa política acabou abrindo espaço para a disputa de território e ampliando a taxa de encarceramento. Também fez com que, em muitos casos, os criminosos migrassem para a prática dos roubos e latrocínios. Há ainda um outro problema, que é o aumento da violência policial. O governo optou de alguma forma por reduzir os mecanismos de controle, até como uma maneira de contentar o policial que está atuando de forma precária, mas que quando se depara com uma situação de confronto acaba abusando da violência. Deste modo, acabamos entrando em um ciclo vicioso em que a criminalidade aumenta, a polícia se torna mais violenta e a população aplaude.

Quais são os dois principais grupos? São os Bala na Cara, que é o grupo majoritário hoje em Porto Alegre, e os Anti-Bala que são grupos minoritários que se articularam para enfrentar o primeiro grupo.

Mas as facções já não existem há bastante tempo. Por que esse aumento da violência agora? Houve uma grande renovação nas lideranças dos grupos, seja por prisão ou por mote de chefes antigos. O grupo Bala na Cara cresceu muito e, como se percebe pelo nome, eles têm uma atuação muito violenta, que consiste em exterminar os rivais e ocupar territórios.

Há influência do PCC nesses grupos? Não, a polícia não identificou a presença significativa de membros do PCC. O nosso cenário hoje é muito mais parecido com o Rio de Janeiro, em que há uma disputa por pontos do tráfico do que em São Paulo, onde há o monopólio do PCC.

Que soluções o senhor sugeriria para conter essa onda de violência? Me parece que há um problema de concepção de foco. É difícil pensar na abolição total desse mercado, que existe em toda a parte. O foco deveria ser os homicídios, seja o praticado entre facções ou contra a população. Muitas vezes a polícia pensa que, por ser bandido matando bandido, não precisa ser investigado. O foco deveria ser combater isso. É muito grave ter pessoas usando armamento pesado e violência para manter o controle do mercado da droga.

A polícia também deveria levar mais a sério estatuto do desarmamento. E fazer batidas policiais para recolhimento de armas, o que não é tão difícil de fazer. Também faltam políticas preventivas, que envolva outros órgãos, públicos e privados, para se combater a criminalidade em lugares mais vulneráveis onde a presença da polícia é rara. Na verdade, a polícia e os presídios só enxugam gelo senão se atua nas políticas de prevenção. Outra coisa que teria bastante impacto nas estatísticas criminais seria o esclarecimento dos homicídios. O governo até investiu nisso no passado, criou 4 delegacias especializadas em homicídios e alardeou que a taxa de esclarecimento aumentou em 75%. Mas esse número se referia a inquéritos finalizados e levados ao Ministério Público. Acontece que, por falta de provas e falhas nas investigações, muitos deles não resultavam nem em denúncia. Uma das causas é a situação de precariedade em que se encontra o Instituto de Criminalística no Rio Grande do Sul. E falta pessoal e material diante de uma demanda cada vez maior. Sem uma perícia de qualidade, não há esclarecimento de homicídios.

O senhor acha que falta punição? Não. Esse é um discurso absolutamente frágil, o de que a lei é branda e que “a polícia prende e a Justiça solta”. A criminalidade cresce e toda culpa é colocada na impunidade. Se isso fosse verdadeiro todos os Estados estariam na mesma situação do Rio Grande. É a mesma legislação.


Diante da crise, o governo já começou a se mexer. O que acha das mudanças propostas? A crise chegou a uma proporção muito grande com a morte de uma mãe que ia buscar o seu filho na escola. Depois disso, o governo trocou o secretário e passou a adotar um discurso de que alguma coisa de fato seria feita. Ivo Sartori tentou até trazer o [José Mariano] Beltrame para a Secretaria de Segurança do Rio Grande do Sul, que não aceitou a proposta. Por fim, trouxe Cezar Shirmer, que é um político e tem pouca experiência em segurança. Fora isso, ele era prefeito de Santa Maria na época da tragédia da boate Kiss, o que já traz um desgaste para a sua imagem. Mas o governador já anunciou a contratação de 800 policiais para o ano que vem e já está pensando em recompor as horas extras e pagar o salário integral aos policiais, o que pode gerar problemas com os servidores de outras áreas


sábado, 24 de setembro de 2016

Quem são os policiais que querem a legalização das drogas e o fim da violência na corporação

Três adolescentes apanham de uma fila de policiais militares. É Carnaval em João Pessoa, e os jovens invadiram um orfanato para roubar uma televisão e uma bicicleta. "Onde está a arma?", perguntam os policiais. Entre uma pancada e outra, dois cadetes que acompanhavam a operação saem da sala.
A cena, que teria acontecido em 2006, foi descrita à BBC Brasil por um dos cadetes que reprovaram a abordagem - a Secretaria de Segurança da Paraíba não se pronunciou até a publicação desta reportagem.
Dez anos depois e agora capitão da PM, Fábio França diz que ainda rejeita a violência na instituição. Ele faz parte de um grupo de policiais civis e militares que se autodeclaram antifascistas e criticam a política de segurança pública adotada no Brasil.
Espalhados pelo país, seus integrantes - grande parte deles acadêmicos ou com pós-graduação - querem o fim da militarização e a legalização das drogas.
"O que me levou a despertar foi tentar entender que mundo era esse. Percebi o comportamento dos meus colegas e isso foi me angustiando. Queria saber por que se transformavam naquilo", diz França, que então decidiu fazer mestrado e doutorado em Sociologia.
"Procuramos que a PM se reencontre com as instituições democráticas."
Para fazer esse debate, o grupo se organiza há alguns anos pela internet e em eventos de associações como a Leap (agentes da lei contra a proibição das drogas). Um dos sites que concentra essa discussão, o Policial Pensador, teve 200 mil visualizações desde que entrou no ar, em 2014. Criada pelo tenente Anderson Duarte, do Ceará, a página reúne artigos sobre temas como redução da maioridade penal.
Duarte, de 33 anos, diz que a convergência dessas ações nos últimos anos foi provocada pelo maior acesso dos profissionais de segurança à educação e pelo fortalecimento de um discurso conservador, que gerou a necessidade de um contraponto.
"Muitos pares têm pensando de forma diferente e faltava um espaço para discussão. Sempre partimos do ponto de que não existe democracia sem polícia, e aí perguntamos: que polícia nós queremos?"

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